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2003: Caminhos e Descaminhos Culturais do Governo FHC

A oferta cultural, durante os oito anos do governo Fernando Henrique Cardoso, foi abundante: com a retomada da produção audio-visual, centenas de filmes reocuparam parte, ainda que mínima, da cadeia de exibição do país e reinseriram nosso cinema no mapa-mundi; surgiram diversos centros culturais privados, alguns deles administrados e programados com competência e recursos que faltam a quase todas as instituições públicas; mega-casas de espetáculos foram construídas para abrigar um show biz nacional e internacional ávido por grandes platéias; grupos e projetos cênicos independentes continuaram florescendo por todo o país garantindo a safra de teatro, dança e circo; a rede de artes visuais diversificou-se por circuitos alternativos e popularizou-se com mega-exposições que atingiram públicos superiores a campeonatos de futebol; vicejaram suplementos literários impressos e eletrônicos; nossa tele-dramaturgia manteve sua qualidade mesmo acossada pela melo-dramaturgia mexicana; patrimônios históricos urbanos foram recuperados; a música popular viveu nova onda de reverência internacional, bafejada pela expansão da world music e a nova bossa da bossa nova; a música erudita consolidou programas anuais e atingiu excelência orquestral em uma experiência isolada na Paulicéia.

Apesar dessa efervescência na cena cultural, o Ministério da Cultura de FHC carregará para a história poucos méritos, porque vários destes processos não foram decorrentes da ação do governo federal e os que foram são fruto de improvisação e desperdício.

A exuberância, no varejo, não redime uma grande omissão, no atacado: em 8 anos de governo, FHC não formulou nem implementou nenhuma política cultural. Ou seja, faltou o principal: uma visão estratégica do papel do Estado no campo cultural de uma sociedade inserida no mundo globalizado, traduzida em planos de ações gerais e específicos para os diversos segmentos culturais, populacionais, geográficos etc.

O governo FHC nunca teve um projeto de desenvolvimento cultural que traduzisse seu respeito pela cultura. Acobertou a falta de idéias para o setor com um sistema de financiamento baseado na dedução integral no imposto, que subverteu o princípio elementar do incentivo fiscal, que é o de usar o dinheiro público para estimular o investimento privado. Tornou as leis de incentivo repassadoras perdulárias do numerário público, condenando o meio cultural a peregrinar pelas empresas em busca de recursos do erário que deveriam estar disponíveis em fundos de financiamento direto.

Há mais de uma década, fatores de mercado induzem as empresas a associarem suas marcas a ações de interesse público em múltiplos campos. O patrocínio tornou-se uma estratégia eficaz para atingir objetivos institucionais, promocionais e de relacionamento, canalizando recursos de comunicação empresarial para projetos comunitários, ambientais, esportivos e culturais. Em 2001, os patrocínios no planeta movimentaram nestas áreas US$ 23,6 bilhões, sem contar os recursos das fundações e instituições empresariais.

Este investimento é impulsionado pelo desgaste da publicidade e da promoção convencional que requer canais diferenciados e segmentados de envolvimento; pela valorização das ações que irradiam atributos desejados pelas marcas; pela expansão do senso de responsabilidade social nas empresas que beneficia as formas de comunicação éticas e de efeito residual positivo para os consumidores-cidadãos.

No Brasil, a combinação destes fatores já fazia florescer a participação empresarial na cultura, antes mesmo da existência do incentivo fiscal, implantado pela Lei Sarney, em 1986, sucedida pela Lei Rouanet, a partir de 1991, ambas regidas pelo princípio da dedução parcial. Ou seja, estimulavam as empresas a investirem recursos próprios, permitindo que uma parcela do patrocínio fosse resgatada pela redução do seu imposto de renda.

Até que surgiu a Lei do Audiovisual, em 1993, com a surreal alíquota de 125% de dedução: a empresa não só podia abater integralmente o valor investido na aquisição de cotas de filmes, como ainda lançá-lo como despesa,  reduzindo, indiretamente, mais imposto. Por escapar a qualquer lógica, era evidente que a fórmula foi implantada por ignorância: confundiu-se dedução da renda bruta com dedução do imposto a pagar. Mas como a aplicação, na época, era limitada a 1% do imposto da empresa, a Lei “não pegou” e não provocou maiores danos.

Ao assumir em 1994, FHC herdou do governo Itamar o Ministério da Cultura, antes extinto por Collor, e as duas Leis, até então inoperantes.

Importante ressalvar que a Lei Rouanet não era uma mera lei de incetivo fiscal. Ela instituía o Programa Nacional de Apoio à Cultura, com a finalidade de captar e canalizar recursos para o setor por três mecanismos: o Fundo Nacional da Cultura – FNC; o Fundos de Investimento Cultural e Artístico – FICART e o Incentivo a Projetos Culturais, este sim voltado ao patrocínio. Ou seja, os formuladores da Lei Rouanet tinham consciência que um sistema de financiamento à cultura não se sustenta em um único pé. Primeiro, a Lei estabelecia o princípio do fundo público, o FNC, essencial para viabilizar ações de mérito cultural que não encontram abrigo no mercado. Na ponta  oposta, estimulava, pelo FICART, as atividades culturais lucrativas, proporcionando benefícios aos seus investidores. E por último, oferecia incentivo fiscal para o patrocínio e a doação privada, na parte da Lei que a tornaria conhecida.

O Ministério da Cultura de FHC manteve o FICART paralisado e não regulamentou o acesso ao FNC, distribuindo os recursos deste fundo sem critério e sem transparência. E na falta de programa e planejamento, apostou todas as fichas no instrumento do incentivo fiscal. Aprimorou pontualmente sua operacionalidade e ampliou seu limite de aplicação de 2% para 5% do imposto a pagar das empresas. Mas manteve a contrapartida de recursos da empresa entre 70% e 60%, permitindo a dedução  entre 30% e 40% do valor patrocinado ou doado.

Em agosto de 1996, o MinC de FHC perdeu o rumo definitivamente. Sem corrigir a aberração da dedução de 125% da Lei do Audiovisual, colocou-a em movimento ampliando em 200% seu limite de aplicação, que passou de 1% para 3% do imposto a pagar. A soma da dedução fiscal com as comissões cobradas por agenciadores e a revenda dos certificados promovidos legalmente pelas empresas, que perceberam que poderiam leiloar suas disponibilidades fiscais entre os produtores interessados nos recursos, atingia mais de 50% do valor da operação. Pela aritmética da Lei do Audiovisual, para que R$ 60 cheguem ao caixa do filme, se consomem R$ 125 de dinheiro público, sem qualquer contrapartida privada (vide quadro).

Foi por este processo irracional que o governo FHC financiou o renascimento do cinema brasileiro. E o pior estava por vir. Com a Receita Federal limitando a soma dos incentivos fiscais a 5% do imposto a pagar e a Lei do Audiovisual consumindo 3% de um número crescente de empresas, restaram somente 2% para aplicação na Lei Rouanet, que cobria todas as áreas culturais, incluindo o próprio cinema, que dela também se valia.

Sem referência histórica de financiamento público, nem compreensão da lógica do patrocínio empresarial, grupos organizados de diversos segmentos artísticos passaram a pressionar o governo para que a Lei Rouanet oferecesse dedução integral no imposto. Mesmo ciente das distorções da Lei do Audiovisual, o MinC decidiu estender seus vícios. Em 1997 legalizou 100% de dedução para o patrocínio em quatro segmentos  e, em 2002, a praticamente todos os demais.

Talvez por não dispor de um projeto de desenvolvimento para o setor, o MinC de FHC renunciou à função de induzir processos culturais. Ao transferir para as empresas recursos e responsabilidades do Estado, cometeu múltiplos equívocos: investiu dinheiro público sem a efetiva garantia de atender o interesse público; não formou reais investidores privados, pois ninguém aprende nada gastando dinheiro alheio; deformou o mercado de patrocínio, incutindo na cultura empresarial a isenção sem contrapartida.

É necessário que as empresas apliquem seu próprio dinheiro e tenham a liberdade de escolher os projetos que melhor atendam seus interesses. Só assim esse investimento faz sentido. O patrocínio empresarial atende um número expressivo de ações, mas não contempla a diversidade e extensão das demandas culturais de uma sociedade. Por isso, é fundamental que o Estado disponha de linhas de investimento direto.

Assim, o novo governo tem diante de si a tarefa de redesenhar o sistema de financiamento à cultura e desmontar, cuidadosamente, o modelo em vigor. Não seria prudente revogar de forma súbita os instrumentos existentes, uma vez que são a única fonte de recursos disponível e possibilitam a realização de centenas de atividades culturais que envolvem profissionalmente milhares de artistas, intelectuais, técnicos e administradores.

O fardo de distorções a corrigir é pesado: os investimentos estão concentrados nos grandes centros econômicos do país e boa parte beneficia uma parcela pequena da sociedade, mantendo à margem uma vasta população de excluídos culturais; dispende-se volumes expressivos de recursos em produções artísticas que não circulam e se esgotam em poucas exibições para poucos; a rede de instituições culturais públicas está estruturalmente insolvente, sobrevivendo com o “caixa dois” das “sociedades de amigos”; o patrimônio histórico e artístico nacional padece de sustentabilidade; grupos culturais independentes não dispõem de recursos institucionalizados para manutenção, pesquisa e intercâmbio; a produção editorial está confinada a uma ínfima rede de livrarias e a uma elite de leitores; o modelo de produção audiovisual é cronicamente inviável.

O sistema perdulário de financiamento do Ministério da Cultura do governo FHC ao menos recomprovou nossa fertilidade cultural: em se plantando, dá.  Os recursos ampliaram expressivamente a oferta cultural e resultaram em muitos projetos de qualidade.

O desafio do Ministério da Cultura de Lula será atingir os objetivos estabelecidos, há mais de dez anos, no Artigo 1º do Programa Nacional de Apoio à Cultura:
– “facilitar, a todos, os meios para o livre acesso às fontes da cultura e o pleno exercício   dos direitos culturais;
– promover e estimular a regionalização da produção cultural e artística brasileira, com a valorização de recursos humanos e conteúdos locais;
– apoiar, valorizar e difundir o conjunto das manifestações culturais e seus respectivos criadores;
– proteger as expressões culturais dos grupos formadores da sociedade brasileira e responsáveis pelo pluralismo da cultura nacional;
– salvaguardar a sobrevivência e o florescimento dos modos de criar, fazer e viver da sociedade brasileira;
– preservar os bens materiais e imateriais do patrimônio cultural e histórico brasileiro;
– desenvolver a consciência internacional e o respeito aos valores culturais de outros povos ou nações;
– estimular a produção e difusão de bens culturais de valor universal formadores e informadores de conhecimento, cultura e memória;
– priorizar o produto cultural originário do País.”

Como se vê, não há muito mais o que prometer. Só a fazer.

 

Yacoff Sarkovas
Publicado no “Valor Econômico”, em 3 de janeiro de 2003.