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1997: A Grande Ilusão

Boa vontade não é sinônimo de competência. O governo FHC tem percepção da importância estratégica que a cultura tem para o país e se esforça para acertar. Mas comete equívocos e está prestes a ampliá-los.

Vem financiando o cinema brasileiro com um mecanismo perdulário, irresponsável e ilusionista – a Lei do Audiovisual – e agora quer estender seus vícios para a legislação que rege os benefícios fiscais das demais áreas culturais.

PERDULÁRIO

O objetivo de uma lei de incentivos fiscais é o de estimular a sociedade a investir em áreas que o poder público considera prioritárias. O princípio é o da parceria: o contribuinte coloca parte do bolso, o Estado completa o restante por meio de deduções fiscais.

Assim funciona a Lei Rouanet: a empresa patrocina um projeto cultural e resgata parte do custo reduzindo seu imposto de renda. Na Lei do Audiovisual é diferente: a empresa torna-se sócia de um filme sem colocar nenhum centavo do bolso. Todo “investimento” é deduzido do imposto. Qual a diferença?

Na Lei Rouanet, o poder da empresa decidir que projeto quer ou não patrocinar se justifica porque ela investe efetivamente recursos próprios. Seduzidas pela dedução fiscal, complementam a conta utilizando suas verbas de comunicação. Vêm descobrindo, assim, que associar marcas a atividades culturais agrega valor e melhora a credibilidade e o relacionamento com o público-alvo.

Um aprendizado criativo e consequente: se, no futuro, a Lei Rouanet for extinta, as

empresas que até então tiverem acumulado boas experiências de patrocínio continuarão a financiar parte da demanda cultural do país.

Como na Lei do Audiovisual nada se paga, nada se aprende. Não há efeito residual. É território do velho Brasil malandrinho, esperto. Atravessadores que se relacionam com executivos das áreas de tributos se comissionam vendendo às empresas uma mamata: virar sócia de um filme usando exclusivamente dinheiro público. Como não há dinheiro próprio envolvido, a operação não é vivenciada como um investimento.

Impera a Lei de Gerson. Abordadas por um número de propostas superior aos tetos de dedução fiscal, as empresas passam a realizar leilões: o produtor cinematográfico que oferecer a maior taxa de recompra do certificado leva. Traduzindo: a empresa compra cotas de um filme com dinheiro público revendendo-as na mesma hora pela melhor oferta, embolsando a quantia obtida.

A aritmética: na Lei Rouanet, quando o Estado investe R$ 100, o mercado cultural recebe R$ 160. As empresas patrocinam a diferença. Na Lei do Audiovisual, os mesmos R$ 100 de recursos públicos se quer chegam inteiros ao mercado cinematográfico. Entre comissões e recompras chegam a ficar R$ 40 pelo caminho. Se este fosse o preço para se criar no país  um mercado de investimento em cinema, talvez até valesse a pena. Ocorre que o mecanismo não está formando investidores. Ninguém aprende nada gastando dinheiro alheio.

De toda forma, esta transferência de recursos  não está revitalizando a nossa produção audiovisual? Sim! Mas a que preço? Se o dinheiro é 100% público, por que transferir aos contadores das empresas as decisões de financiamento do cinema nacional, deixando ainda escorrer pelo ralo parte substancial dos recursos? É surreal! E pode piorar.

IRRESPONSÁVEL

Em agosto de 1996, o governo aumentou de 1% para 3% a alíquota de dedução para pessoas jurídicas na Lei do Audiovisual. Foi alertado de que a medida canibalizaria os recursos de incentivo fiscal das demais áreas culturais. A nova alíquota, somada à da Lei Rouanet, atingia a casa dos 8%, enquanto a Receita Federal limita a dedução fiscal, no geral, a 5%.

Resultado: ao buscar patrocínio para seus projetos, os produtores culturais passaram a encontrar um número crescente de empresas que já haviam esgotado a maior parte de seus recursos dedutíveis pela Lei do Audivisual.

Alguns segmentos – como o das artes cênicas e da música – se mobilizaram exigindo equiparação dos benefícios. Em resposta, o Ministério da Cultura está prestes a alterar a Lei Rouanet por medida provisória, isentando as empresas do custeio parcial do patrocínio, a exemplo da Lei do Audiovisual. Uma solução? Uma omissão! O governo estenderá o carcinoma que inoculou no cinema para novas áreas do organismo cultural. Interromperá, num gesto leviano e irresponsável, um aprendizado que teve início em 86, com a finada Lei Sarney. Desde então, profissionais  da cultura e do marketing vêm aprimorando a arte de associar atividades culturais a marcas de empresas e produtos com benefícios recíprocos. O marketing cultural provocou o aumento na quantidade e na qualidade das atividades culturais no país. Basta ver a incrível oferta de eventos patrocinados por marcas nos anúncios dos jornais.

As leis de incentivo contribuem duplamente para o desenvolvimento do marketing cultural: a parte dedutível do imposto reduz o custo do patrocínio, tornando-o mais atraente para as empresas. A parte não dedutível exige que o projeto atenda a necessidades concretas de comunicação da empresa.

O equilíbrio entre esses fatores é fundamental para que a relação cultura-empresa seja consistente. Se as empresas não precisarem mais pagar sua parte, o negócio deixa de ser negócio e vira cambalacho.

E como ficam as atividades culturais que não apresentam atrativos para serem compradas pelas empresas como ferramentas de comunicação? Devem ser financiadas com recursos públicos diretos, sem intermediação. E quais são as fontes e as regras desse financiamento?

ILUSIONISTA

Bem, finalmente chegamos ao ápice da questão: o governo não tem ainda uma política de investimento para a área cultural e tenta substituir sua incapacidade de formulá-la, vendendo a ilusão que tudo será resolvido com recursos privados.

Como empresas são empresas – não instituições de caridade – e só compram o que precisam, o governo entrega seus próprios recursos para que façam de conta que estão fazendo o que não estão. Um jogo de cena que o Ministério da Cultura está prestes a levar para outros palcos.

A complexidade da questão cultural não aceita soluções simplistas. O modelo contemporâneo bem sucedido equaciona recursos de quatro fontes: do Estado, dos consumidores, do mecenato e dos patrocinadores. A proporção de uso dessas fontes depende da especificidade de cada demanda cultural. Uma orquestra sinfônica, por exemplo – um corpo estável capacitado a executar repertório erudito em padrão de excelência – não se sustenta somente com a venda de ingressos, nem sua manutenção básica pode depender acentuadamente dos recursos de patrocínio, pois a flutuação inerente à dinâmica da comunicação empresarial colocaria em risco constante a sua sobrevivência. O financiamento direto do Estado, neste caso, serve como lastro. E que papel cabe às outras fontes?

A dependência parcial dos recursos da bilheteria é um estímulo indispensável para que o grupo não perca de vista sua razão de ser: o público. O mecenato de instituições do chamado terceiro setor pode sustentar um programa de bolsas de estudo e intercâmbio para o aprimoramento dos músicos. E ainda resta a possibilidade de se associar uma marca à extraordinária carga simbólica da sinfônica, obtendo recursos para desenvolver novos programas, realizar turnês pelo país, promover concertos ao ar livre, …

De toda forma, os recursos públicos neste exemplo, como em muitos outros, são indispensáveis. Recursos que o Ministério da Cultura alega não ter, enquanto despende-os de forma irracional.

O mercado cultural parece estar mergulhado num transe. Em vez de cobrar do governo a formulação de uma política de investimento concreta, trama leis que obriga-o a pagar comissões para que gigolôs de incentivo fiscal busquem no caixa das empresas um dinheiro que é, na verdade, 100% público.

De quebra, perde a chance histórica de estabelecer vínculos sólidos e duradouros com o mercado empresarial para diminuir, sem fantasias, sua dependência do Estado e ingressar de fato na economia de mercado.

 

Yacoff Sarkovas
Publicado no “Jornal do Brasil”, em 26 de abril de 1997.