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2008: Por Que Insistir em um Modelo Insustentável?

A cultura e as artes movimentam parte significativa da economia planetária. As indústrias criativas crescem para alimentar uma demanda inesgotável por estética, símbolos, lazer e entretenimento. Porém, os recursos gerados por este vasto mercado de consumo não suprem a diversidade e complexidade da cultura, comportando outras três fontes de financiamento, distintas e complementares:

  • O Estado, que tem a responsabilidade de fomentar a criação e a fruição artística e intelectual, bases do progresso humano
  • O investimento social privado, evolução histórica do mecenato, pelo qual cidadãos e instituições privadas tornam-se agentes do desenvolvimento da sociedade
  • O patrocínio, estratégia empresarial para tornar as marcas mais próximas e envolventes, com maior afetividade, credibilidade, relevância e reputação junto a seus públicos de interesse.

No Brasil, o sistema de financiamento público às artes baseado em dedução fiscal emaranhou estas fontes, subvertendo suas lógicas, pervertendo seus agentes e, de quebra, confundindo a opinião pública.

No mês de março, profissionais de teatro foram a Brasília apoiar uma legislação que também canaliza recursos para a área por dedução fiscal, um modelo econômica e socialmente insustentável. Vamos imaginar que os médicos reivindiquem poder investir, por critérios próprios, um naco do imposto na saúde pública; os educadores, para manter abertas escolas públicas; as empresas de transporte, para criar estradas exclusivas; e  -por que não? -, cada cidadão reter outro tanto do imposto para montar seu próprio esquema de segurança. Bastaria um punhado de categorias adotar esta lógica para não haver mais imposto a recolher. Por conseqüência, poderíamos suprimir o Estado e dispensar os governos.

Tomar posse de dinheiro público para destiná-lo por critérios individuais e privados é um ato anti-republicano. Desinformados e iludidos pela justa perspectiva de injetar recursos no seu campo de atividade, muitos artistas e produtores ajudam a propagar o câncer do incentivo fiscal, em vez de lutar por políticas e fundos de financiamento direto do Estado, regidos por critérios técnicos e públicos.

Esse modelo de dedução fiscal à cultura, único no mundo, foi criado pela Lei Sarney, em 1986  – substituída pela Lei Rouanet por Collor, em 1991-, ampliado com a Lei do Audiovisual por Itamar, em 1993, e replicado por municípios e Estados via dedução no ISS, IPTU e ICMS. Fomentadas por ignorância, no governo FHC, e mantidas por incompetência, no governo Lula, as leis de incentivo mobilizarão, neste ano, mais de R$ 1 bilhão. Recursos integralmente públicos que financiam somente a parcela da produção artística que desperta o interesse das empresas.

A dedução fiscal gera produção cultural porque distribui dinheiro, não por ser lógica ou justa. É uma forma prática de obter recursos sem enfrentar disputas no orçamento público. Nada tem a ver com patrocínio ou investimento privado de verdade. Empresas promovem ações sociais, ambientais, culturais, esportivas, de entretenimento e comportamento como estratégia eficaz, saudável e rentável de valorizar marcas e fortalecer relacionamentos. Por isso, em todo mundo, investem seus próprios recursos institucionais, de marketing e comunicação.

Em outros países, incentivo fiscal é somente lançar as contribuições à cultura como despesa na declaração de renda. Ou seja, é poder doar dinheiro do próprio bolso sem ser sobretaxado por isso. No Brasil, a Lei do Audiovisual permite dedução integral no imposto a pagar e, ainda, o abatimento como despesa, reduzindo o imposto acima do valor aplicado. O resultado é um ganho real de mais de 130% ao “investidor”,  sem risco. Espectadores-cidadãos não se dão conta que as marcas que aparecem na abertura dos filmes brasileiros são de empresas que ganham dinheiro público para fingir que são investidoras culturais e decidir que aquele filme, e não outro, deva ser produzido. Em vez de exigir o fim deste escândalo, setores do teatro reivindicam “equiparação de benefícios”.

É certo que o Estado brasileiro consome 50% do PIB e pouco do que devolve tem valor reconhecido pela sociedade; é compreensível que os brasileiros desconfiem que os nossos governos sejam regidos pela corrupção. Mas não corrigiremos mazelas históricas subtraindo recursos e responsabilidade públicas para distribuí-las a interesses privados.

Melhor seria lutar para reduzir a carga tributária, para benefício da sociedade civil, e ajudar a construir um Estado mais eficaz, com capacidade de formular e implementar políticas públicas, financiando diretamente as ações por princípios republicanos.

 

Yacoff Sarkovas
Publicado no “O Estado de S. Paulo”, em 12 de abril de 2008.